Brasília encerrou 2020 com 4.259 mortes por covid-19. Foram 251.701 casos confirmados da doença no ano passado, segundo dados da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. A situação piorou em 2021. O número de óbitos saltou 71% do fim de dezembro até 19 de abril, e os casos aumentaram 46%. Com o fechamento de leitos e a falta de medidas para reduzir a circulação de pessoas, acompanhados do recrudescimento da pandemia e do surgimento de novas variantes do coronavírus, a capital federal enfrenta um colapso na saúde em 2021.
Dados da Secretaria de Saúde do DF atualizados até 3ª feira (20.abr) mostram que o sistema de saúde pública de Brasília opera com 99,3% dos leitos públicos de UTI para pacientes adultos com covid-19 ocupados. Há 452 leitos desse tipo na rede pública, sendo que 438 estão ocupados, 10 estão aguardando liberação e 1 está bloqueado por necessidade de manutenção. Apenas 3 estão disponíveis. Na rede particular, o quadro não é muito diferente. A taxa de ocupação dos leitos é de UTI está em 98,4%.
A fila de espera por um leito de UTI tinha 211 pessoas até 3ª feira. Há pacientes aguardando por um leito mesmo com vagas disponíveis porque muitas vezes elas não são adequadas para as necessidades específicas daquela pessoa.
A especialista em políticas públicas Michelle Fernandez avalia que basear a estratégia de combate à pandemia na disponibilização de leitos de UTI, sem frear o ritmo de transmissão do coronavírus, faz com que o Distrito Federal esteja fadado ao fracasso. “Nunca vamos abrir leitos de UTI suficientes para alcançar todas as pessoas que vão necessitar”, afirma a pesquisadora, que estuda políticas de saúde e é professora no Ipol (Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília). “Esse é um pacto social muito injusto. Quando você diz às pessoas que estão abrindo leitos em hospitais, esquece de dizer que elas têm 80% de chance de morrer”, acrescenta.
Levantamento do Poder360 mostra que 87,9% dos internados por covid que precisaram ser intubados em fevereiro morreram. No Distrito Federal, essa taxa é de 79,8%. Outros dados, levantados pelo projeto UTIs brasileiras, também indicam que é alta a taxa de mortalidade nas unidades de terapia intensiva. São 29,7% os pacientes que morrem depois de ser internados com covid em UTIs de hospitais privados. A proporção de mortes é maior na rede pública: 52,9%.
“O governo do Distrito Federal foca na disponibilização de leitos de UTI e mesmo assim falha”, comenta Fernandes.
Para a pesquisadora, deveria ter sido feito um monitoramento preciso das taxas de contágio para que os gestores públicos pudessem controlar melhor o endurecimento ou afrouxamento de medidas de distanciamento social em Brasília. “Não há nada estruturado para o enfrentamento da pandemia no sentido de frear o contágio do vírus. A gestão não é feita com base nos achados científicos e as decisões são baseadas na taxa de transmissão, que possivelmente não condiz com a realidade porque a testagem é muito baixa”, explica.
Medidas de restrição
A imposição de restrições à circulação no DF foi marcada por um vaivém de decisões judiciais. Em 8 de março, o governador Ibaneis Rocha (MDB) decretou toque de recolher das 22h às 5h, com circulação permitida apenas em caso de tratamento de saúde emergencial ou compra de remédios em farmácias, além do retorno do trabalho para casa. A medida ficou em vigor até 29 de março. No dia seguinte, a 3ª Vara Federal Cível do Distrito Federal determinou a suspensão da reabertura do comércio, mas uma decisão do TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) anulou a medida.
Nova decisão do TRF-1, proferida em 8 de abril, determinou o fechamento dos serviços não essenciais. Entretanto, em 9 de abril, o presidente do STJ (Superior Tribunal de Justiça), Humberto Martins, decidiu que o Distrito Federal tem autonomia para definir medidas de isolamento social durante a pandemia. O ministro, assim, derrubou a decisão do dia anterior do TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região), que ordenava a retomada do lockdown em Brasília.
José David Urbaez, diretor científico da Sociedade de Infectologia do DF, avalia que foi colocada de forma equivocada a dicotomia entre economia e saúde em Brasília. “As restrições de circulação são sempre feitas parcialmente, e os grupos de poder locais acabam impondo suas pautas para manter as atividades em funcionamento”, comenta.
Fechamento do hospital de campanha do Mané Garrincha e de leitos de UTI
Em 15 de outubro, o Hospital de Campanha do Mané Garrincha encerrou as atividades. Em funcionamento desde maio de 2020, a estrutura recebeu cerca de 1.800 pacientes com covid-19, dos quais 1.787 foram recuperados e 32 morreram. O hospital tinha 173 leitos de enfermaria para adultos e 20 de UCI (unidade de cuidados intermediários) para pacientes que precisavam, por exemplo, de máscara de oxigênio. Foi fechado devido ao vencimento dos contratos, segundo o governador Ibaneis Rocha.
“Recebo dezenas de mensagens todos os dias me acusando de ter fechado o Hospital de Campanha do Mané Garrincha precocemente. Isso não é verdade! Primeiro que ele não tinha leitos de UTI, mas de enfermaria. Segundo que ele sempre teve um prazo estipulado para ser fechado”, declarou no Twitter em 11 de março de 2021, referindo-se aos 3 contratos assinados para instalação do hospital de campanha: de cessão do espaço, de manutenção e de gestão da saúde, que venceram de setembro a outubro de 2020.
Petrus Sanchez, secretário adjunto de Assistência à Saúde do DF, reforçou que, para a instalação de leitos de UTI, é necessário atender a regulamentações específicas da vigilância sanitária, que, segundo ele, não poderiam ser cumpridas no ambiente provisório do estádio. “A necessidade neste momento é mais por leitos de UTI, serviço que o hospital de campanha nunca ofertou”, disse, em entrevista concedida em março à Agência Brasília.
O fechamento da instalação de assistência à saúde no Mané Garrincha foi parte de um plano de fechamento de leitos para tratamento de pacientes com covid-19, publicado pelo governo do DF em 5 de outubro. Eis a íntegra (3 MB).
O plano previa a desmobilização de 256 leitos de UTI covid para adultos, de pelo menos 53 leitos de UCI e 223 de enfermaria. Com a desmobilização, os leitos podem voltar a atender pacientes com outras doenças e/ou que não precisem de internação, ou então podem ser devolvidos por encerramento de contrato. O plano não foi concluído porque o DF voltou a apresentar piora no controle da pandemia, com aumento do número de casos confirmados do fim de novembro ao início de dezembro, segundo a Secretaria de Saúde, que não informou quantos leitos foram efetivamente fechados.
Em um novo plano (íntegra – 3,6 MB) apresentado em 28 de dezembro, o governo determinou a abertura de 151 novos leitos de UTI e a aquisição de outros 67, além de 66 de UCI e 179 de enfermaria.
Atraso nos hospitais de campanha
Em 25 de março deste ano, Ibaneis Rocha anunciou a construção de 3 hospitais de campanha para atendimento de pacientes com covid-19. Segundo ele, a contratação vai acrescentar 300 leitos de UTI ao sistema de saúde da capital. As estruturas ficarão disponíveis por 180 dias no Plano Piloto, em Ceilândia e no Gama. A previsão inicial era iniciar o funcionamento até 14 de abril. Entretanto, a Secretaria de Saúde precisou fazer uma retificação no projeto básico de contratação das empresas de gestão, que fornecem insumos, equipamentos e profissionais, conforme anunciou o secretário de Saúde do DF, Osnei Okumoto, em entrevista à imprensa no dia 15 de abril.
Para a instalação dos leitos de UTI em hospitais de campanha, é necessário que essa especificação seja detalhada no projeto de contratação das empresas, o que não havia sido feito pela secretaria. A nova previsão é que a inauguração ocorra até o fim de abril. Segundo a Secretaria de Saúde, entretanto, a retificação não alterou a programação prevista de assinatura de contrato nos próximos dias. Questionada sobre por que essa especificação não foi feita no contrato do Hospital de Campanha do Mané Garrincha, que não tinha leitos de UTI, a Secretaria de Saúde não respondeu.
Em fevereiro, Ibaneis Rocha já havia anunciado a abertura de 150 leitos de UTI. Atualmente, segundo o governo, estão em funcionamento os hospitais de campanha de Ceilândia, com 40 leitos de enfermaria e 20 de UTI, e da PM, com 100 leitos de UTI. O Hospital Regional de Ceilândia conta com um hospital acoplado, com 63 leitos de enfermaria exclusivo para pacientes com covid-19, e um 2º hospital acoplado está em construção ao lado do Hospital Regional de Samambaia, com capacidade para 100 leitos equipados com suporte ventilatório.
Testes rápidos são questionados
A subnotificação de casos de covid-19 no Distrito Federal, considerada por especialistas uma das razões para a precariedade das políticas de controle da transmissão do vírus, passa por suspeitas de irregularidades na compra de testes. Em julho, um dos meses de pico da pandemia, a Justiça suspendeu a compra de 100 mil testes rápidos feita pelo governo do Distrito Federal.
A decisão foi proferida no mesmo dia em que o Ministério Público e a polícia deflagraram uma operação para apurar irregularidades na compra desses testes em Brasília.
O Poder360 já havia identificado que os testes comprados estavam acima do valor de mercado. Em 23 de junho, reportagem mostrou que o governo do DF iria comprar 1 milhão de testes rápidos e alertou para a possível falsa sensação de segurança que o ato poderia trazer, já que esse tipo de teste não detecta o coronavírus em si, mas se a pessoa já teve contato com o vírus e produziu anticorpos.
Ibaneis Rocha rebateu a operação, dizendo que em tempos de pandemia “acontece tudo” e que o MP e a polícia teriam que provar se os testes para a covid-19 usados em Brasília eram mesmo de baixa qualidade.
Ações na Justiça por leitos
Com a escassez de leitos, as ações na Justiça por acesso a leitos de UTI explodiram em 2021. Nos primeiros 23 dias de março, a Defensoria Pública do Distrito Federal ajuizou 355 ações para pedidos de leitos de UTI. O número é quase 6 vezes maior que o registrado em fevereiro, quando foram 60 ações do tipo.
Nesses casos, quando não há cumprimento da ordem judicial, a situação é informada ao magistrado responsável para que tome medidas de execução, como imposição de multa, intimação das autoridades, sequestro de verbas públicas e encaminhamento ao Ministério Público para apuração da conduta.
A Defensoria Pública do Distrito Federal ainda apresentou, em 5 de abril, uma recomendação a 5 hospitais particulares para liberação de leitos à rede pública. Segundo o órgão, houve bloqueio de leitos destinados para atender aos usuários do SUS, mas que foram ocupados por pacientes com convênios de saúde.
O acesso a leitos de hospitais militares têm sido outro ponto de discussão. Em 6 de abril, a DPU (Defensoria Pública da União) entrou com uma ação na Justiça para que o governo federal disponibilize leitos de enfermarias e UTI em 3 hospitais militares em Brasília. O Ministério da Defesa argumenta que atua “no limite de suas capacidades”. Para a defensoria, entretanto, os dados “não são verificáveis, já que pouquíssimos hospitais militares divulgam informações sobre leitos“.