Dona Nadir dos Santos percorreu as comunidades do igarapé do Miriti, no Alto Marau, em Maués, coletando assinaturas para o abaixo-assinado que viabilizou a instalação das urnas, garantindo o direito ao voto para mais de 400 indígenas Sateré-Mawé
O dia 5 de abril deste ano começou diferente para dona Nadir dos Santos Ferreira. A líder indígena Sateré-Mawé de 71 anos de idade conta que, logo ao amanhecer, embarcou em “uma missão” em busca de assinaturas para um abaixo-assinado que garantiu a criação de duas novas seções eleitorais na comunidade Nossa Senhora de Nazaré, na Terra Indígena Andirá-Marau, na região do Alto Rio Marau, em Maués.
Graças à persistência da líder indígena, a uma luta de dois anos do povo Sateré-Mawé e a uma articulação conduzida pela Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM), neste domingo (7), mais de 400 eleitores das comunidades das “cabeceiras” do igarapé do Miriti vão exercer sua cidadania na plenitude e votar para prefeito e vereador. Antes, a maior parte deles levava até um dia de viagem para votar na localidade mais próxima.
“Fomos até as comunidades Campo do Miriti, São Bonifácio, Novo Remanso, Dívino Espírito Santo, Novo União, Novo Unido, Marau Novo, Santo Anjo, Santo Antônio e outras. Percorremos as comunidades em busca de assinaturas na ata para que fosse implantada uma urna eletrônica aqui em Nossa Senhora do Nazaré”, relatou dona Nadir, que é vice- tu’isa da comunidade (tu’isa significa cacique ou tuxaua na língua Sateré), ressaltando que a iniciativa foi apoiada pelos demais tu’isas da região.
A líder indígena, que não fala português (tivemos a ajuda de tradutores), conta que a missão foi feita em uma voadeira com motor de 15 HP. “Pegamos chuva, sol e passamos fome, se alimentando somente de saúva taiá (formiga) com chibé, mas em busca de um grande sonho, coletando as assinaturas dos parentes”, disse ela, ao alternar expressões mais sérias com sorrisos de satisfação.
Nadir explicou que a instalação de urnas eletrônicas na comunidade era necessária, levando em consideração as dificuldades para votação no lugar mais próximo até então, a comunidade Vila Nova, que fica a quilômetros de distância. “Agora me sinto muito feliz por ter conquistado uma luta em prol do meu povo. Agradeço à doutora Daniele (Fernandes, defensora pública de Maués) por ter dado esse apoio. Waku Sese (saudação na língua Sateré)”, finalizou.
O trabalho de dona Nadir viabilizou a instalação de duas urnas eletrônicas em Nossa Senhora de Nazaré, que, no percurso fluvial, fica distante mais de 100 quilômetros da sede de Maués – de cinco a 12 horas de barco rio acima.
As novas seções eleitorais, de números 176 e 179, da 5ª Zona Eleitoral, atenderão a 496 eleitores, quantidade suficiente para eleger um representante na Câmara Municipal – o vereador eleito de Maués menos votado de 2020 recebeu 432 votos.
O abaixo-assinado foi entregue ao Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas (TRE-AM), que, na sequência, avaliou a possibilidade e participou de um mutirão organizado pela DPE-AM em Nossa Senhora do Nazaré (Mo’yha Aikawiano Hanuat Ko’i Pyt’awa Hap – Acesso a Direitos), realizando mudança do local de votação para a comunidade e a emissão de novos Títulos de Eleitor, o que garantiu a criação das novas seções. Inicialmente seria apenas uma urna, mas a procura foi tão grande que seção adicional precisou ser criada.
“Nós temos dois locais de votação nessa região indígena, um fica na comunidade Santa Maria e outro na Vila Nova. Esses dois locais de votação já estavam lotados”, disse a servidora Márcia Miranda, do TRE-AM, ao citar que, por conta disso, muitos eleitores da região eram redirecionados para locais ainda mais distantes.
“Foi feita uma reivindicação para criação de uma seção uma nova sessão aqui na comunidade Nossa Senhora de Nazaré e foi deferido pelo tribunal. Foi feita uma inspeção in loco para ver se o local se adequava e agora estamos aqui realizando esse serviço”, acrescentou ela, durante o mutirão, quando anunciou que não seria uma mas duas novas seções.
“Isso é muito importante porque vai distribuir de uma melhor forma os eleitores”, observou. As novas seções, explicou Márcia, vão atender todas as comunidades circunvizinhas do Alto Marau.
Cidadania
O Defensor Público Geral, Rafael Barbosa, disse ter ficado surpreso ao saber da coordenadora do Polo de Maués da DPE-AM, Daniele Fernandes, que a principal demanda das comunidades indígenas do Alto Marau era eleitoral.
“Imagina ter que pegar um dia inteiro de barco para chegar a um local de votação. Então, possibilitar novas seções na comunidade é garantir a esse cidadão o direito de poder participar do processo eleitoral, de exercer os direitos políticos e de escolher quem é que vai lhe representar, que vai defender os seus direitos”, disse.
“Não basta emitir o título, é preciso proporcionar que esse ato de votar não seja um martírio e, sim, um direito”, acrescentou.
A defensora Daniele Fernandes, que juntamente com as lideranças comunitárias organizou o mutirão que efetivou a criação das seções eleitorais, disse que levou mais de um ano de planejamento para a realização da ação desde quando foi procurada pelos indígenas, que apresentaram a demanda por documentação e pela seção eleitoral.
Segundo a coordenadora do Polo de Maués da DPE-AM, a dificuldade de acesso impossibilitava a população indígena Sateré-Mawé da região a obter a sua documentação civil, o que prejudicava o acesso a direitos básicos como vagas em escolas e até mesmo vacinação.
“São quase dez horas de viagem de barco da sede de Maués até aqui em Nossa Senhora de Nazaré. Ainda há muitas outras comunidades, ainda mais longe”, disse.
A importância do voto
Uma das eleitoras que fez questão de mudar o local de voto para Nossa Senhora de Nazaré foi dona Senhorita dos Santos Gastão, de 82 anos de idade, mesmo não sendo mais obrigada a votar. Moradora da comunidade Vista Alegre, ela levava horas de rabeta para vota em Vila Nova. “Era muita despesa com combustível. Aqui, agora, fica mais próximo”, disse.
O tu’isa de Vista Alegre, Menézio Pereira Santana, 46, disse que foram anos de luta até a criação das novas seções. “Para nós é muito importante ter urna aqui. As comunidades são muito distantes da cidade, aí para cima são mais de 17. São muitas horas de rabeta para chegar. Para votar, no tempo da seca, é pior ainda. Por isso batalhamos tanto”, afirma.
“Eu gosto de votar. Eu já votei 18 vezes na Vila Nova. Sempre indo de rabetinha. Sai sábado de tarde para votar logo domingo de manhã”, relembra o tu’isa, que defende: “Precisamos ter um Sateré-Mawé do Alto Marau na Câmara de Vereadores. É isso que nós pensamos. Colocar uns três vereadores para representar a gente”.
Menézio afirma que a maioria dos políticos “só olha para as comunidades onde ele vai ter voto” e que o Alto Marau oferecia poucas votações, em razão da dificuldade de chegar aos locais de votação. “Como é que iam olhar por nós?”.
O presidente da Associação de Tuxauas dos Rios Urupadi, Miriti e Manjuru (Tumupe), Samuel Lopes, converge na análise de Menézio. “Acreditamos que se, a gente tiver bastante eleitor aqui, os governantes vão olhar mais. Geralmente eles só olham por onde são eleitos”, pontua.
Responsável por conduzir uma caravana de 299 pessoas que viajaram durante nove horas em 16 rabetas para participar do mutirão em Nossa Senhora do Nazaré, o tu’isa Janoso Cristino de Oliveira, do Campo do Miriti, também acredita que a criação das seções eleitorais vai trazer melhorias para a região. “Estamos buscando nossos direitos. Não tinha mais como 64 famílias terem que passar um dia inteiro viajando para votar e outro para voltar. Agora, pelo menos, vai ficar mais perto”.
Sobre o mutirão
Realizado entre os dias 15 e 17 de abril deste ano em Nossa Senhora de Nazaré, o mutirão “Mo’yha Aikawiano Hanuat Ko’i Pyt’awa Hap – Acesso a Direitos”, realizou mais de dois mil atendimentos. A ação com oferta de serviços de documentação civil para a população Sateré-Mawé foi coordenada pela DPE-AM e contou com a parceria de diversas instituições.
Foram 2.112 atendimentos. Os serviços ofertados foram de emissão e retificação de Certidão de Nascimento, registro de nascimento tardio, registro de óbito tardio, emissão de Carteira de Identidade Nacional (CIN, antigo RG), CPF e Título de Eleitor. Também foram ofertados a alteração do local de votação e o registro no CadÚnico para obtenção do Bolsa Família.
Além da Tumupe, o mutirão de atendimentos tem como parceiros: a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), as secretarias estaduais de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania (Sejusc) e de Segurança Pública (SSP-AM), a Secretaria Municipal de Assistência Social de Maués (Semas), Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (TJAM), Associação Puratig dos Indígenas Sateré Mawé do Município de Maués (APISMMM), Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas (TRE-AM), Ministério Público do Estado do Amazonas (MPAM), Cartório Andrade, Receita Federal do Brasil (RFB), Distrito Especial Indígena Parintins (DSEI/PIN) e Casa de Saúde Indígena (Casai).
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Texto: Luciano Falbo
Fotos: Márcio Silva/DPE-AM