Brasileiros voltaram a cruzar a ponte que liga os dois países em outubro, após 1 ano e meio de pausa pela pandemia. Diversidade de idiomas e etnias marca a pequena localidade, que espera se beneficiar com o rápido crescimento econômico do país para atrair ainda mais visitantes.
Depois de mais de um ano de fronteira fechada devido à pandemia de Covid-19, roraimenses voltaram a cruzar a fronteira do Brasil com a Guiana diariamente para fazer compras na pequena cidade de Lethem — o único ponto de ligação entre os dois países.
Lethem, aliás, é a única cidade que tem o inglês como idioma oficial e que faz fronteira com o Brasil. Do outro lado do rio Tacutu, está o município roraimense de Bonfim, que tem 12,5 mil habitantes.
Por causa da pandemia, a fronteira ficou fechada de março de 2020 até outubro de 2021. Reaberta parcialmente, a Guiana exige comprovante de vacinação completa contra a Covid-19 e, em dias mais cheios, um teste de PCR negativo para a doença feito até 72 horas antes da entrada
O inglês é só um dos idiomas que se ouve na pequena cidade guianense que não chega a ter 2 mil habitantes. Ao cruzar a fronteira, os guardas pedem, em inglês, um documento de identidade e o cartão de vacina. Depois, ouve-se espanhol, francês, português e até chinês.
É que Lethem se tornou um paraíso de compras para os brasileiros, com leis fiscais bem menos rígidas do que do outro lado da fronteira. Isso em um país onde o PIB deu um salto de 43% em 2020, segundo o Banco Mundial
Então, a principal rua da cidade agrupa enormes galpões onde funcionam lojas que vendem de tudo: roupas, materiais escolares, artigos de Natal, perfumes e outras quinquilharias — algumas originais e outras piratas. Nas prateleiras, dá para ver nomes de marcas claramente adulterados. Por exemplo, um perfume que tenta imitar Versace se tornou “Versage”.
Muitos desses importados são itens chineses que chegam pela capital guianense, Georgetown, e atravessam 550 km por dentro da Floresta Amazônica. Algumas lojas de Lethem são mantidas por migrantes que vieram da China.
Por outro lado, como o maior volume de compras vem do Brasil — de gente que sai não só de Roraima, mas também de Amazonas e outros estados do Norte —, o idioma mais falado na principal rua de comércio em Lethem é o português. Aliás, o piseiro e o sertanejo dominam os sistemas de som das lojas locais.
“Os brasileiros são maioria entre os visitantes aqui”, afirma Alan Monteiro, 40 anos, funcionário de uma das maiores lojas de Lethem. “É uma cidade bem pequena, mas relativamente segura. E as pessoas são bem receptivas com os brasileiros.”
A Torre de Babel de Lethem se completa com o espanhol e o francês, dois idiomas que ilustram o momento pelo qual o continente sul-americano passa.
A língua espanhola é usada principalmente por venezuelanos que deixaram um país em grave crise humanitária e tentam a sorte nas lojas da cidade guianense. O francês é trazido pelos haitianos que chegam pelo Caribe também para escapar de um país em colapso.
Para além das características próprias da migração em Lethem, a Guiana em si abriga uma enorme diversidade étnica: quase 40% da população tem origem indiana, herança dos tempos em que o Reino Unido dominava a Índia e o território guianense.
A composição populacional guianense também inclui descendentes de africanos que foram trazidos na época da escravidão para as colônias britânicas nas Américas; e, claro, os indígenas.
“Tem feriados indianos, por exemplo, em que vem gente de Georgetown para visitar a família aqui e participar das festas”, conta o brasileiro Alan.
Um desses feriados indianos é o holi, festival hindu que celebra a chegada da primavera com pós coloridos e tintas nas ruas da cidade.
E há também feriados muçulmanos, como o Eid Al-Adha — a Festa do Sacrifício, comemorada em 2021 em julho. O islamismo é a terceira religião mais predominante na Guiana, trazida tanto pelos indianos quanto pelos africanos ainda nos tempos do colonialismo britânico. E, como religião ainda predominante, a Sexta-Feira Santa e o Natal também são feriados no país.
Potencial pouco explorado
Com a abertura gradual das fronteiras, Lethem tenta ser não só um centro de compras, mas também um polo para o turismo ecológico. A cidade guianense, assim como o nordeste de Roraima, tem como vegetação o lavrado, uma espécie de savana cercada pela densa mata da Amazônia. Há cachoeiras e montanhas que são bastante típicas da região.
Esse potencial, porém, esbarra na falta de infraestrutura. Para quem está em Boa Vista, é até tranquilo chegar a Lethem — são cerca de 130 km pela BR-401, uma rodovia pavimentada e bem conservada, com pequenas lanchonetes e restaurantes no caminho.
A situação muda para quem vem da própria Guiana. A rodovia que liga Lethem à capital Georgetown, no norte do país, é um atoleiro. Só veículos apropriados conseguem fazer a travessia. Uma viagem que poderia durar cerca de seis horas em uma via pavimentada pode chegar a 12 horas, isso se não chover. Há um aeroporto, mas são poucos os voos entre as duas cidades, geralmente em aeronaves bem pequenas.
E falta infraestrutura, mesmo no centro de Lethem. Poucas vias são asfaltadas, e há poucos hotéis e restaurantes. Em dias mais quentes, a poeira sobe, e a principal rua de comércio fica quase intransitável sem um carro com ar-condicionado.
Para melhorar o acesso a Lethem, empresários brasileiros da região constantemente viajam a Georgetown para se encontrar com autoridades guianenses. Em 2019, durante um evento na capital com representantes de diversos setores, o governo da Guiana admitiu que melhorar a infraestrutura das estradas é essencial para uma melhor ligação com o Brasil.
Há esperança entre os guianeses porque, mesmo com a pandemia, o país registra uma das melhores taxas de crescimento do mundo graças à exploração do petróleo e da demanda aberta para o país com a crise e as sanções aplicadas contra a vizinha Venezuela. Para se ter uma ideia, segundo o Banco Mundial, o Produto Interno Bruto (PIB) da Guiana deu um impressionante salto de 43,48% em 2020.
No entanto, o país precisará superar crises políticas e a desigualdade para se tornar ainda mais atrativo. As eleições presidenciais de 2020, vencidas por Irfaan Ali, foram marcadas por denúncias de fraude e uma intensa divisão entre descendentes de africanos e indianos.
Além disso, o índice de desenvolvimento humano (IDH) da Guiana é de apenas 0,682, numa escala que vai de 0 a 1. É apenas o 122º no ranking mundial, atrás dos vizinhos Suriname (97º), Brasil (85º) e até mesmo de uma Venezuela em colapso (113º).