Em entrevista ao R7, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações afirma que cobrança de prescrição sobrecarrega o SUS
A cobrança de prescrição médica e a obrigatoriedade da vacinação contra a Covid-19 em crianças serão temas de debate da audiência pública que ocorre nesta terça-feira (4). Na avaliação do presidente da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações), Juarez Cunha, a exigência do exame atrasa a proteção dessa faixa etária, acentua desigualdades e leva maior demanda ao já sobrecarregado SUS (Sistema Único de Saúde), que terá a tarefa extra de atender 20 milhões de crianças, público estimado para receber a vacina, e disponibilizar o documento para elas.
Para Cunha, a reunião é desnecessária e tardia, além de protelar o início da vacinação de crianças. Ainda assim, o especialista em pediatria, intensivista pediátrico e membro da Diretoria de Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre espera conseguir um diálogo capaz de reverter decisões previamente anunciadas pelo Ministério da Saúde, sobretudo em relação à prescrição médica, o que considera uma “barreira de acesso à imunização”.
”Nós temos, pelos cálculos do ministério, em torno de 20 milhões de crianças nessa faixa etária aptas a receber a vacina. Então imagine o que seria o acesso de 20 milhões de crianças aos pediatras para ter uma receita com solicitação da vacinação. Isso causaria um transtorno desnecessário à nossa rede, levando em conta que a vacina está licenciada pela Anvisa de acordo com os critérios de segurança e de eficácia”
A própria afirmação do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, adiantando que “nenhuma modificação vai mudar o cerne da recomendação” já traz dúvidas quanto à efetividade da audiência pública, acredita Cunha. Nesta segunda-feira (3), Queiroga disse, em conversa com jornalistas, que o objetivo tanto da audiência quanto da consulta pública é trazer uma “ampla discussão com a sociedade sobre um tema que é fundamental” e que “as opiniões dos especialistas podem trazer algo para aprimorar o que o ministério já colocou”.
Para o presidente da SBIm, falta predisposição para ouvir o que a comunidade científica tem solicitado, incluindo a própria avaliação da Cetai (Câmara Técnica Assessora de Imunização Covid-19), do Ministério da Saúde, que se posicionou contra a cobrança da prescrição médica. Leia a entrevista completa.
Por que a cobrança da prescrição médica não seria oportuna neste momento?
Não deve ser colocada, em um momento de emergência, essa barreira de acesso. Seria um transtorno muito grande para o SUS e acentuaria desigualdades porque, provavelmente, as famílias das crianças que têm acesso a um pediatra particular, a um convênio teriam mais facilidade. É preciso levar em conta a sobrecarga de trabalho desnecessário na rede pública e também na rede privada. Na avaliação não só da SBIm mas de todas as sociedades científicas que se manifestaram a favor da vacinação esse é um instrumento totalmente desnecessário.
Nesse sentido, existe a necessidade de, na audiência pública, rebater essa recomendação e tentar, de alguma forma, fazer com que o Ministério da Saúde desconsidere a cobrança?
Temos que esperar para ver o que que vai acontecer audiência pública, apesar de que, desde o primeiro momento em que o ministro anunciou tanto a consulta pública como a audiência, a medida já estava posta. Inclusive, anteriormente, em outra audiência pública, nós já nos posicionamos [a favor de] que essa cobrança não deveria existir. A própria posição da Cetai é a de que não se deve exigir um atestado médico. Então, o fato é que essa consulta e a nova audiência nem tinham sentido de acontecer. Mas nós temos que lidar com a realidade e ver o que o Ministério da Saúde vai propor.
Então qual seria o propósito, em sua avaliação, desse movimento do governo ao propor essas consultas?
Provavelmente o que a gente vai ouvir nessa audiência é a desinformação das fake news que têm sido estimuladas pelos grupos antivacina e que a gente imaginava que não deveriam ser ouvidas, porque não são baseadas na ciência. Mas são decisões do nosso governo nas quais a gente não pode interferir. Poderemos nos posicionar contra. Teremos alguns representantes da sociedade científica, mas com certeza também teremos dos grupos que são antivacina, senão não teria sentido esse movimento do ministério.
Além da prescrição médica, quais outros pontos devem ser motivo de embate na audiência?
Acredito que a obrigatoriedade da vacina será um embate importante. Temos, inclusive, vários secretários de Educação a favor dessa medida, como uma forma segura de essas crianças retornarem às escolas. Sabemos que, por lei, as vacinas preconizadas pelo PNI [Programa Nacional de Imunização] são obrigatórias para crianças e adolescentes nessa faixa etária. Então, isso será uma discussão importante.
Outro tema é a priorização das crianças com comorbidade. Nós já vimos que, quando trabalhamos com a priorização de pessoas tendo que procurar a rede de saúde para comprovar a comorbidade, isso atrapalhou e atrasou a vacinação, apesar da necessidade na época. Então, no universo de 20 milhões de crianças, a minha opinião pessoal é que isso seria mais uma barreira, em tempos em que já há disponibilidade da vacina. É mais prático fazer por faixa etária, ainda que a comorbidade seja um fator importante, mas a logística dificulta muito.
Falando em logística, sabemos que a dosagem da vacina para crianças entre 5 e 11 anos será diferente, com frascos diferentes. Mesmo assim, seria necessário separar os locais de aplicação desse público para evitar erros?
Essa é mais uma questão de debate: a preparação de sala exclusiva para crianças. A ideia surge no sentido de tentar evitar, ao máximo, o erro, porque a gente sabe que, se há vacinação de adulto e criança no mesmo ambiente, há possibilidade de erro. A sala exclusiva é uma ideia interessante, mas sabemos que a maioria das nossas unidades não tem essa capacidade de oferecer uma sala específica. Então essa é uma barreira problemática e que deve suscitar debate.
Por fim, precisamos discutir a orientação de reter as crianças no local por 20 minutos, para fins de observação. Essa recomendação não faz sentido, tendo em vista que não é usada para nenhuma outra vacina da infância. É uma precaução em relação à reações anafiláticas, que são alergias graves, mas que não têm sido relatadas como fator de preocupação.
Em suma, há muito que discutir. Como eu disse, essa decisão de realizar uma consulta e uma audiência foi uma surpresa. É a primeira vez que acontece esse tipo de incitação. Como surpresa, tudo pode acontecer e esperamos que a ciência prevaleça.