Muitas pais estão em espera para conseguir a documentação, após realizarem agendamento para serem atendidos em um dos postos de interiorização na capital
Manaus (AM) – “Atravessar pela trouxa e grávida não foi fácil. Deixei tudo para trás e, hoje, estou reconstruindo minha vida em Manaus. Tive muito medo, numa travessia que para idosos, mulheres e gestantes é complicada. Mas, era vir ou morrer de fome na Venezuela e grávida”, fala Maria Ramiréz, nome usado para preservar a identidade da nossa personagem.
Aos 25 anos, viu a mãe morrer de fome, uma idosa de 76 anos e o marido ser morto em um assalto, deixando-a na chamada rua da “amargura” e grávida de 3 meses. “Foi então que decidi vir ao Brasil com um grupo de outras três mulheres. A coisa se complicou porque o medo da pandemia causou um caos ainda maior em todo canto e o pais está dolarizado. Cheguei até me prostituir, para poder arrumar dinheiro”, conta.
E assim foi feito até chegar a Santa Helena de Uairén, capital do município de Gran Sabana, que fica a cerca de 15 quilômetros da fronteira da cidade brasileira de Pacaraima, no Estado de Roraima.“
Lembro do alívio na alma quando eu pisei no Brasil pela primeira vez e ainda tive medo duma barreira que colocaram por lá. Fiquei mais três dias em Pacaraima, peguei outra trouxa e consegui chegar a Boa Vista. De lá, mais uma semana de programa. Comprei uma passagem e cheguei em Manaus e fui acolhida com muito carinho aqui. Agora, luto para tirar minha documentação, porque tive meu filho e ele ainda não tem uma certidão de nascimento. Não tenho orgulho do que fiz, mas pensei na sobrevivência do meu filho“
Maria Ramiréz, nome fictício
O relato de Maria soma-se ao de inúmeras mulheres venezuelanas grávidas que deixaram tudo para trás, em busca de uma vida mais digna no Amazonas, pedindo documentos de residência ou refúgio, por meio da ajuda da Acnur – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, da OIM – Organização Internacional para as Migrações ou UNICEF – o Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância.
Muitas delas estão em espera para conseguir sua documentação, após realizarem agendamento para serem atendidas em um dos postos de interiorização na capital que, além destes órgãos, conta com a colaboração da Receita e Policia Federal.
Mulheres estas que também são atendidas pela Súper Panas (traduzido do espanhol como super amigos), projeto executado pelas aldeias infantis SOS em Manaus, no Amazonas e em Belém, no Pará, com apoio do Unicef, que atua no sentido de garantir que a população migrante e em situação de refúgio, especialmente, as crianças e adolescentes, tenham acesso à proteção social, segurança e outros direitos fundamentais, além de dar suporte na questão dos documentos, frente aos órgãos competentes.
Até o momento, o projeto já contabilizou, ao menos, 734 apoios para a emissão de documentação realizada, desde 2019. Porém, devido à morosidade do processo e vários entraves que causam a demora na retirada dos documentos, pelo menos 15 crianças que nasceram na capital amazonense estão sem a Declaração de Nascidos Vivos (DNV), já que os pais estão se legalizando.
Além disso, mais de 300 crianças e adolescentes aguardam para retirada da documentação nacional.
Segundo a coordenadora do Súper Panas, Susy Ellen Pacheco, geralmente, as mulheres apresentam a cédula de identidade venezuelana, mas esbarram em dificuldades burocráticas na hora de conseguir a certidão do filho.
“Algumas maternidades que ainda dão a DNV (Declaração de Nascido Vivo), mas a maioria tem a questão dos documentos do Brasil que precisam ser retirados. Nós temos o exemplo de um casal que tem a cédula venezuelana e o CPF, mas não possuem o registro migratório e, por conta disso, a maternidade não quis liberar o documento e estamos fazendo o acompanhamento da família”, explica.
A coordenadora disse, ainda, que em 2021 existiam algumas parcerias para ajudar estas crianças recém-nascidas. Porém, novamente, os entraves burocráticos prejudicaram o processo.“
Até no meio do ano passado a gente tinha parceria com um cartório e só com a cédula venezuelana e o CPF a gente conseguia que fosse emitida a certidão. Mas, aí, por conta dessas questões … muda aqui, muda ali, embate entre cartórios, todo um impeditivo e passou a se solicitar que se apresente a regularização migratória e aí que a gente passa para o grande problema, porque muitos ainda estão esperando e não é do dia para o outro que chegam para eles os documentos de refúgio“
Susy Ellen Pacheco, coordenadora do Súper Panas
Falta de comunicação e má vontade
Outro ponto que prejudica o registro de filhos dos pais venezuelanos que nascem no Amazonas é uma simples expressão, mas que muda tudo na hora de um bom atendimento para quem perdeu tudo, a chamada “má vontade”.
Pelo menos é assim que classifica a assistente social do projeto, Milem Melo, que também faz parte do projeto e que presenciou várias cenas em que a situação destas pessoas poderia ter sido vista com um pouco mais de humanidade.
“Já informam para as mães que elas não vão receber a DNV, salvo algumas maternidades e a gente tem que entrar, dando esse apoio, para receber. Até o ano passado, houve uma conversa entre diretores de algumas maternidades e alguns cartórios em que chegamos num acordo de que nós conduziríamos e seria emitida a certidão sem nenhum problema”.
“Só que, por várias questões, diretores saem, os outros não são informados. A gente vai num serviço social, pede informação e aí falam, “mas a direção? ”, que “não estou sabendo nada”, “não passou para mim”… ou seja, uma falta de comunicação geral e eles dizem que não podem emitir, o que é uma violação de direitos extrema. Uma criança sair sem a DNV, gente! Nem a declaração que ela saiu viva do hospital, ela não tem. Simplesmente, ela não existe! Civilmente, não! E, se acontece alguma coisa com essa criança e ela vier a óbito, vai ser enterrada como indigente”, afirma.
A assistente social prossegue, relatando a luta que as profissionais do Súper Panas têm passado para conseguir o registro. “A gente fica, certas horas, sem saber a quem recorrer e o projeto entra junto a OIM, a Acnur, fala da extrema necessidade. Vai no cartório e fala “essa criança, pelo amor de Deus”. Estamos aqui para isso, para proteção dos direitos delas e se ninguém defender, elas ficam assim”, desabafa.
Da mesma indignação compartilha a assistente social Jéssica Rodrigues que, junto com Susy, Milem e outros profissionais, dedicam-se a devolver a dignidade às famílias venezuelanas.
“Eu e uma colega psicóloga, Jeane, atuamos numa situação de um pai e uma mãe que tinham saído de uma maternidade sem a DNV da criança e fomos atrás de entender os motivos, porque essa família tinha protocolo de refúgio, cédula venezuelana, CPF, completamente documentados e regularizados na situação migratória”.
“Fomos até essa maternidade no setor de DNV e perguntamos os motivos, pois estavam documentados, a criança já tinha até saído da maternidade e a mulher fala ‘eu não sei o que aconteceu. Algum documento, eles não tinham’. Apresentamos toda a documentação e foi retirado. A gente percebe que, em muitos casos é só a má vontade. Falam até em barreira linguística para entender essas pessoas, mas isso não pode ser colocado como impeditivo para garantir o direito de uma criança, jamais”, explica.
Balanço
Mesmo com os entraves da burocracia, de maio até dezembro de 2021, o Súper Panas apresenta mais dados positivos, como 2600 famílias atendidas. A expectativa é de que, com a volta das atividades do projeto, o mais breve possível, os profissionais possam continuar esse processo, no sentido de ajudar na agilização da retirada de documentos dos migrantes venezuelanos e, consequentemente, facilitando a emissão das Certidões de Nascimento e DNV’s.
Postos
Em relação aos atendimentos nos postos de interiorização, 902 famílias foram atendidas Posto de Interiorização e Triagem para Imigrantes e Refugiados da Venezuela (Pitrig), 604 famílias no Posto de Recepção e Apoio da Operação Acolhida (PRA), dentre outros atendimentos em outros postos da cidade.
Outras 510 famílias também vem sendo atendida e que vivem de aluguel em outras zonas da capital.
Ainda em relação aos atendimentos prestados pelo poder público, Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania (Sejusc), por meio de nota “informa que presta auxílio a migrantes venezuelanos por meio da Gerência de Migração, Refúgio, Enfretamento ao Tráfico Humano e Trabalho Escravo (GMIG), vinculada à Secretaria Executiva de Direitos Humanos (SEDH).
Em casos de emissão de certidão de nascimento de crianças estrangeiras nascidas no Amazonas cujos pais não possuem documentação, é preciso regularizar a situação destas pessoas. Para isso, a Sejusc conta com um Posto de Interiorização e Triagem (PTRIG), localizado na avenida Torquato Tapajós, 1.047, Bairro da Paz, que faz esse procedimento em parceria com as agências que prestam o acompanhamento aos refugiados”.
Cartórios e os números
O Em Tempo entrou em contato com a Associação dos Notários e Registradores do Estado do Amazonas (Anoreg/AM), para saber um pouco mais dos números que se referem aos registros de estrangeiros e filhos de estrangeiros no Estado. Apesar de não ter acesso a nacionalidade dos pais das crianças, os dados apontam quem, em 2020, foram 1.454 registros de nascimento com pelo menos um dos pais estrangeiros. Já em 2021, foram 1.520 registros de nascimento, no mesmo sentido.
Mais casos
O problema da Certidão de Nascimento das crianças filhas de pais imigrantes venezuelanos é apenas um dos muitos gargalos que o Súper Panas enfrenta na defesa deles. Em nossa próxima reportagem, você vai saber como o projeto tem atuado em defesa das mulheres venezuelanas vítimas de exploração sexual e no trabalho e o que fazer para denunciar esses abusos, por parte de quem se aproveita da situação de vulnerabilidade social delas.